Resultados excelentes obtidos em laboratório com o uso da Hidroxicloroquina, com doses inalcançáveis em seres humanos, trouxeram a possibilidade teórica de sua utilização como tratamento de pacientes com a Covid-19. Este achado trouxe-nos a um cenário surreal onde todas as pessoas, mesmo sem nenhuma formação médica ou científica, sentem-se aptas a opinar e até mesmo decidir sobre o uso desta terapêutica, frise-se, experimental.
Medicamentos têm efeitos desejáveis e também efeitos prejudiciais, devendo este fato ser ponderado pelo médico ao intervir, já que, ao alterar ou ao não alterar o curso da doença em um paciente sob seus cuidados, o médico toma para si, e para a instituição ao qual é vinculado, alguma responsabilidade sobre o desfecho do evento.
A Hidroxicloroquina é uma droga de uso autorizado pela Anvisa para o tratamento de outras doenças. Seu uso, no cenário atual, é entendido como um uso off-label e experimental.
O SARS-Cov-2 é um novo coronavírus identificado como agente etiológico da pandemia de Covid-19. Pessoas que testam positivo para o vírus podem evoluir sem sintomas, desenvolver doença leve, moderada ou severa e, mesmo, vir a óbito.
Segundo a Organização Panamericana da Saúde (OPAS), mesmo sem nenhuma terapêutica específica, mais de 80% dos casos evolui para a cura, sem necessitar de internamento e sem usar nenhum medicamento específico[1]. Daí a dificuldade em se confirmar a eficácia de qualquer terapêutica sem um estudo científico adequadamente elaborado, não sendo cientificamente válidos, relatos de que “muitos pacientes” usando esta ou aquela medicação sobreviveram, já que mais de 80% também evoluiriam bem.
Direciona-se aqui o foco da discussão para a responsabilidade inerente ao médico ou à instituição que adota a prescrição da Hidroxicloroquina para seus pacientes e em que medida se encontram obrigados a ressarcir eventuais danos decorrentes desta tentativa de tratamento ou os danos decorrentes da não utilização deste fármaco.
Conforme já explicado, a prescrição de terapêutica específica no tratamento da Covid-19 é experimental, necessitando, obrigatoriamente, seguir a clara regulamentação contida especialmente no Capítulo XII do Código de Ética Médica (CEM) neste sentido. Nos Art. 100 e 101 e no Parágrafo Único do Art. 102.[2], está disposto que a autorização por órgãos competentes, a exemplo do Ministério da Saúde, é obrigatória, mas não suficiente.
Nos trechos supracitados, identifica-se ao menos três requisitos cumulativos necessários para o uso experimental de uma terapêutica em humanos, quais sejam: (i) a existência de protocolo aprovado, (ii) a aceitação por órgãos competentes e (iii) a obtenção de consentimento livre e esclarecido para a realização da pesquisa.
Ou seja, o médico não está autorizado a utilizar qualquer medicamento, de forma experimental, na dose que desejar e no momento que desejar!
Há critérios para esta e qualquer outra pesquisa com seres humanos e tais critérios precisam ser respeitados, de forma a preservar-se a dignidade da pessoa humana. Não é autorizada a livre prescrição de nenhum medicamento. Ao abrir mão destes limites, o médico torna-se, sim, vulnerável à responsabilização por eventuais resultados negativos decorrentes de sua conduta.
Também, levando-se em conta o princípio bioético da autonomia do paciente é obrigatória a anuência do paciente ao tratamento experimental, o que deve ser precedido de informação suficiente sobre efeitos colaterais do tratamento e possíveis resultados adversos, sem menosprezá-los ou majorá-los, incluídos os danos à visão e risco de arritmias letais.
Neste ponto cumpre lembrar, também, que nenhum médico é obrigado a prescrever a medicação experimental, sem respaldo científico para seu uso e sem reconhecimento, em nenhum país, como droga eficaz no tratamento da Covid-19.
O médico tem uma obrigação de meio, e não de resultado, devendo colocar à disposição do paciente todos os recursos, sem perder de vista que a cura não pode ser um compromisso, já que organismos vivos não respondem matematicamente, e resultados adversos podem ocorrer.
Em uma situação de dano ao paciente, será avaliada a responsabilidade do médico e da instituição à qual ele está associado e os fatos serão apurados conforme se mostram, de forma objetiva, cabendo que, no momento da prescrição, sejam avaliados de igual maneira, sem o açodamento nem emoções, dois inimigos de decisões médicas.
Outrossim, são frequentes as acusações de erro médico, pelo que se recomenda, fortemente, a aplicação dos Termos de consentimento para os vários atos médicos praticados no decorrer da relação médico-paciente. Esta formalização das explicações feitas mesmo para atos protocolares já arraigados é uma realidade à qual é preciso se ajustar e se acostumar.
[1] https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875
[2] (É vedado ao médico:) ART. 100. Deixar de obter aprovação de protocolo para a realização de pesquisa em seres humanos, de acordo com a legislação vigente.
Art. 101. Deixar de obter do paciente ou de seu representante legal o termo de consentimento livre e esclarecido para a realização de pesquisa envolvendo seres humanos, após as devidas explicações sobre a natureza e as consequências da pesquisa.
ART. 102. § único. A utilização de terapêutica experimental é permitida quando aceita pelos órgãos competentes e com o consentimento do paciente ou de seu representante legal, adequadamente esclarecidos da situação e das possíveis consequências.