Da Folha de S. Paulo
As negociações conduzidas por empresários brasileiros na tentativa de obter vacinas contra a Covid-19 nas últimas semanas esbarraram em limites impostos pelo estágio atual das campanhas de vacinação, que avançam lentamente na maioria dos países que já aplicaram as primeiras doses.
O principal obstáculo é que as restrições a uma oferta mais ampla de vacinas ainda são muito grandes no mundo, e mesmo os laboratórios que largaram na frente e já estão produzindo e distribuindo imunizantes enfrentam dificuldades para cumprir compromissos assumidos com países mais ricos do que o Brasil.
“Não há vacinas para vender no curto prazo”, diz Gonzalo Vecina Neto, ex-chefe da Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde e ex-superintendente do Hospital Sírio Libanês, em São Paulo. “As que já foram testadas e aprovadas e estão em produção já foram todas vendidas.”
Mesmo se os laboratórios que já estão distribuindo seus imunizantes conseguissem separar parte da produção para vendê-la diretamente a clientes privados, a ação despertaria desconfianças e prejudicaria a reputação dos fabricantes. “O risco para a imagem dessas empresas é enorme”, diz Vecina.
Isso explica a maneira enfática com que o laboratório AstraZeneca procurou se distanciar da iniciativa de um grupo de empresários brasileiros que abriu negociações para comprar um lote de vacinas da empresa, que já tem acordo para fornecer 100 milhões de doses ao sistema público de saúde no Brasil.
Ligados à Coalizão da Indústria, os empresários receberam apoio do governo Jair Bolsonaro, após se comprometerem a destinar ao setor público metade das vacinas que comprassem. Após a iniciativa ser revelada pela Folha, grandes empresas se afastaram e surgiram dúvidas sobre os interlocutores.
A AstraZeneca reafirmou compromissos assumidos com o Brasil e outros países e disse que não tem como oferecer vacinas para o setor privado agora. O fundo de investimentos BlackRock, acionista do laboratório que foi apontado como interlocutor pelos negociadores, negou ter participado das conversas.
A AstraZeneca, que se comprometeu a fornecer 400 milhões de doses aos países da União Europeia, anunciou na semana passada que só conseguirá entregar 31 milhões das 80 milhões de doses prometidas para o atual trimestre, alegando problemas técnicos com uma de suas fábricas, na Bélgica.
O grupo de empresários que se articulou com o governo Bolsonaro afirmou negociar a compra de 33 milhões de doses do imunizante desenvolvido pela AstraZeneca com a Universidade de Oxford, no Reino Unido. Eles dizem que cada dose custaria US$ 23,79, o que elevaria a fatura a US$ 785 milhões.
O preço é 4,5 vezes o valor pago pela Fundação Oswaldo Cruz, do Ministério da Saúde, pelo primeiro lote de vacinas da AstraZeneca que chegou ao país, com 2 milhões de doses importadas do Instituto Serum, laboratório indiano que é o maior parceiro dos britânicos. Cada dose custou US$ 5,25.
A Fiocruz espera receber da China até o início de fevereiro o principal insumo necessário para começar a fabricar a vacina no Brasil, conhecido como Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA). A previsão é que a primeira remessa será suficiente para produção de 7,5 milhões de doses do imunizante.
Uma das cláusulas do contrato da Fiocruz com a AstraZeneca, assinado em setembro do ano passado, permite que a fundação ceda direitos e obrigações a terceiros se houver concordância do laboratório, mas a fundação descarta a possibilidade de o dispositivo ser usado para atender demandas privadas.
“A premissa original do contrato da AstraZeneca com a Fiocruz é garantir a produção nacional da vacina para a população brasileira, pelo Sistema Único de Saúde”, disse a fundação, por meio de nota enviada à Folha. “O contrato não prevê a comercialização ou aquisição de vacinas pelo setor privado.”
Hoje, só a Fiocruz tem autorização da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) no Brasil para importar as vacinas da AstraZeneca, em caráter emergencial. A fundação protocolou na sexta (29) o pedido de registro definitivo, necessário para a distribuição das doses que serão produzidas no Brasil.
Segundo a legislação brasileira e as normas da Anvisa, só detentores do registro definitivo podem importar vacinas. Mesmo se chegassem a um acordo com a AstraZeneca, os empresários envolvidos com as negociações só poderiam receber a mercadoria no Brasil após cumprir os trâmites na agência.
Em paralelo à iniciativa dos empresários da indústria, a Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas negocia a compra de 5 milhões de doses da vacina Covaxin, que está sendo desenvolvida pelo laboratório indiano Bharat Biotech. O objetivo é oferecer o imunizante a clientes das clínicas particulares.
Segundo o jornal Valor Econômico, os termos negociados com a empresa permitem compras pequenas, de no mínimo 2.000 doses e no máximo 400 mil, a preços que variam conforme o tamanho da encomenda, de US$ 32.71 a dose nas aquisições mais volumosas até US$ 40.78 para as menores.
A Precisa Medicamentos, importadora que representa a Bharat no Brasil, afirma que sua prioridade é atender demandas do setor público se o governo demonstrar interesse, mas diz que o laboratório decidiu separar parte da produção para o setor privado e não destinará essas doses a nenhum governo.
Os testes clínicos que avaliam a eficácia do imunizante indiano ainda não foram concluídos. Só depois que isso ocorrer é que o registro para distribuição no Brasil poderá ser solicitado. Como não há exames sendo feitos no país, a legislação impede que o produto seja importado em caráter emergencial.
Especialistas afirmam que as restrições na oferta tendem a diminuir ao longo deste ano, com o aumento da produção dos principais laboratórios e a chegada ao mercado de novas vacinas ainda em desenvolvimento, como a da Bharat. Isso abriria espaço para atender demandas do setor privado.
Em países como o Brasil, em que a maioria dos integrantes dos grupos mais vulneráveis definidos como prioritários, como profissionais de saúde e idosos, ainda terá que esperar meses para receber sua primeira dose, o mais provável é que o cenário demore para mudar, segundo os especialistas.
“Criar uma via de acesso às vacinas para quem ainda não chegou na frente da fila cria problemas éticos tão grandes a essa altura que torna inviáveis essas iniciativas”, diz Adriano Massuda, da Fundação Getúlio Vargas. “Não há ganho econômico que compense o custo para a reputação das empresas”.