Por Raphael Di Cunto e Beatriz Olivon, do Valor Econômico
A Câmara dos Deputados está para aprovar em breve uma proposta de emenda constitucional (PEC) para limitar o número de recursos que chegam ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). O texto pretende que apenas processos com “relevância” sejam analisados pela Corte. Seriam, por exemplo, casos cíveis que discutem valor superior a R$ 606 mil.
Na prática, se essa PEC for aprovada como está, os recursos especiais direcionados ao STJ passarão a ter a obrigação de mostrar a relevância das questões de direito discutidas ali para terem o mérito analisado. Os ministros poderão rejeitar a admissibilidade do recurso se dois terços deles entenderem que não há importância no caso.
Defensores desse “filtro” argumentam que chegam anualmente mais de 10,7 mil processos para cada ministro do STJ, alguns deles com questões jurídicas pouco relevantes, o que torna impossível que os casos mais complexos sejam analisados com qualidade e celeridade.
A PEC foi aprovada pelo Senado Federal em agosto. Precisa de um novo crivo da Câmara sobre as mudanças feitas pelos senadores. Os deputados já haviam aprovado a matéria em 2017, quase por unanimidade, mas o tema ficou anos em debate no Senado por pressão da advocacia, que vê no filtro um risco de que seus recursos não sejam analisados pelo STJ.
A principal mudança no Senado foi estabelecer os casos em que haverá, imediatamente, a presunção da relevância: ações penais, de inelegibilidade e improbidade administrativa; situação em que o acórdão alvo de recursos contrariar jurisprudência dominante no STJ; causas que envolvam valores superiores a 500 salários mínimos (hoje, R$ 606 mil); e outras questões previstas numa futura lei que regulamentará esses procedimentos.
Esse texto foi fruto de acordo entre os senadores e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), segundo a relatora da PEC na Câmara, a deputada Bia Kicis (PL-DF). Ela antecipou ao Valor que manterá essa última versão para permitir a rápida promulgação – qualquer alteração exigiria nova votação pelo Senado por se tratar de emenda constitucional. “A PEC tinha sérios problemas, mas hoje tem um texto que atende a todos os lados”, afirmou.
Para o ministro Luis Felipe Salomão, a relevância, quando aprovada, será um divisor de águas para o STJ. “Vai direcionar a atuação da Corte para o seu real papel de Corte de superposição e ressignificar o STJ”, afirmou. Ele destacou que será preciso ainda uma lei para regulamentar a admissibilidade criada por esse novo filtro.
Apesar das conversas entre senadores e OAB, os advogados não são completamente favoráveis ao projeto. Contudo, ponderam que o texto era mais restritivo antes de sofrer ajustes no Senado. Não obrigava, por exemplo, a análise de todas as ações penais, por isso a resistência da categoria ao projeto diminuiu.
Procurada pela reportagem para falar sobre o acordo, a OAB não quis se manifestar. A vice-presidente nacional do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), Cristiane Romano, diz que a categoria entende que os tribunais estão com muitos processos. Com isso, surgem iniciativas tanto legislativas quanto da jurisprudência para tentar diminuir o número de recursos, diz ela, e dificultar sua proposição.
Maior objetividade nos votos dos ministros e mais sessões o ano todo, sem recesso, seriam outras possibilidades para reduzir os processos, argumenta Cristiane. “Formas que poderiam ajudar sem que houvesse prejuízo na recorribilidade”, afirma. O receio está em como a relevância será analisada pelo tribunal. “Será que os advogados vão conseguir fazer chegar a mensagem de relevância no caso?”, questiona.
Vice-presidente jurídico-legislativo da Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), Flávio Wandeck disse que a entidade reconhece a necessidade de aperfeiçoamento porque o número de recursos que chegam aos tribunais superiores é “realmente alarmante”. Porém, os defensores públicos temem que esse filtro dificulte o acesso dos mais vulneráveis à Justiça. Ele sugere uma mudança na PEC para que “questões sociais relevantes” sejam consideradas.
Wandeck exemplifica a importância do aspecto social nesse filtro com o recente julgamento do STJ que limitou apenas a procedimentos listados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) a obrigação de pagamento pelos planos de saúde, o chamado “rol taxativo da ANS”. “Essa linha de corte de 500 salários mínimos nos processos cíveis atende à demanda de questões econômicas relevantes, mas não parece ter preocupação com questões sociais que impactem a coletividade e não só um indivíduo”, afirmou.
A comissão especial que discute a PEC foi instalada há duas semanas pela Câmara. Os prazos apontavam que ela só seria votada pelo plenário após as eleições de outubro, mas o interesse do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), em votar outras PECs relacionadas à questão dos combustíveis está fazendo com que todos os prazos processuais corram muito mais rápido. Isso poderá permitir a votação da “PEC da Relevância” já em julho.