Vacina sem privilégios
Alfredo Guarischi

 

Alfredo Guarischi é médico

Estamos vivendo ajoelhados ou morrendo pronados (pacientes de barriga para baixo), numa nova crise sanitária com componentes bastante semelhantes aos que enfrentamos na Gripe Espanhola (1918-1920). Alguns ignoram que essa pandemia se transforma numa bomba incendiária ao misturarem política de saúde com política na saúde.

Todos erram. Dirigentes, jornalistas, políticos, juristas, governantes, revistas e organizações científicas. A imensa maioria sem dolo.

Eu também erro. Mas o vírus não. Ele conhece as conclusões de Charles Darwin e se adapta, sofre mutações e sobrevive. O vírus precisa de nós para se perpetuar; por isso, precisamos nos livrar dele.

Os vírus não têm alma, assim como as guerras. Durante a Segunda Guerra Mundial, os túneis do metrô de Londres, inaugurado em 1863, salvaram milhares de vidas ao servir de abrigo antiaéreo contra as bombas nazistas, mas o pânico custou a vida de quase duas centenas de pessoas, pisoteadas na tentativa de entrar na estação de Bethnal Green.

Depois disso, o governo britânico entendeu sua obrigação de coordenar a nova utilização desses centenários túneis, pois não havia tempo para construir abrigos com acomodações mais adequadas. Aprenderam que, em situações de urgência, o melhor é o possível.

No Rio de Janeiro, os dois hospitais de campanha da Rede D’Or e seus parceiros, sem qualquer subsídio público ou isenção fiscal, tiveram resultados clínicos expressivos no atendimento de milhares de pacientes com Covid-19. Fizeram o que alguns achavam improvável. Agora que temos diversas vacinas, que competem num mercado mundial de 8 bilhões de consumidores, podemos ser pisoteados por indecisões.

Na Revolta da Vacina contra a varíola em 1904, Oswaldo Cruz enfrentou a indignação dos cidadãos que alegavam o direito de não aceitar aquele líquido desconhecido, gerando um descontentamento enorme e o desejo de derrubar o presidente Rodrigues Alves. O movimento foi dominado, mas a Lei da Vacina se tornou facultativa. O presidente, reeleito em 1918, morreu em janeiro de 1919, no auge da Gripe Espanhola, sem ter tomado posse. Agora, com a Covid-19, todos querem ser vacinados, mas há falta desse líquido.

O Brasil deve seguir o que a imensa maioria dos países está fazendo, priorizando a vacinação dos mais vulneráveis, por idade ou doenças, e dos profissionais de saúde, pois cabe a estes cuidar dos enfermos. Mas toda nossa população tem o justo direito de ser vacinada, sem prejuízo por pertencer a qualquer classe social. Recorro a Victor Hugo, romancista francês, que nos ensinou que ser bom é fácil, mas o difícil é ser justo.

Como então ser menos injusto?

O transplante de órgãos de cadáver no Brasil é um bom exemplo. A cooperação no trabalho permitiu que o SUS e a iniciativa privada tenham uma relação não predatória, pois o critério de gravidade é o principal fator para o recebimento de um novo órgão, sempre graças à generosidade de famílias enlutadas. A vacinação eficaz contra a Covid-19 deve ser uma decisão simbiótica.