Cuidados da porta para dentro
Rodolpho Ricci *

Rodolpho Ricci é diretor Executivo da APOIO Ecolimp

O mundo enfrenta uma crise sem precedentes nos últimos cem anos. Segundo o Centro de Estudos sobre o Coronavírus da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, até o dia 27 de abril, o mundo registrava 3 milhões casos confirmados e cerca de 210 mil mortes por Covid-19.

Ainda sem um tratamento específico ou vacina, a melhor medida encontrada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e mais de 150 países foi o isolamento social. Esta medida colabora para o achatamento da curva de infecção e evita que os serviços de saúde fiquem sobrecarregados causando um colapso em todo o sistema.

No entanto, mesmo com as medidas de isolamento, muitos profissionais precisam estar em seus postos de trabalho, considerados serviços essenciais. Este é o caso das equipes de saúde que, diariamente, cuidam de pacientes que estão com ou sem o vírus.

Em meio a esta crise, o número de profissionais afastados por terem contraído o COVID-19 é consideravelmente alto. O Centro Europeu de Controle e Prevenção de Doenças divulgou dados recentes que dão conta de que o país vizinho é, entre todos os afetados, o que mais profissionais de saúde teve infectados.

Cerca de 20% do total de casos confirmados em Espanha são de profissionais sanitários. Na Itália, tão devastada pela pandemia, o percentual é de 10 % enquanto nos Estados Unidos fica em  3%. Na China, ficou em 3,8% do total de casos confirmados. No Brasil,  a situação não é diferente, com centenas de profissionais que  já contraíram a doença nas principais capitais do país.

Profissionais assintomáticos de equipes assistenciais ou de apoio podem ser vetores e contaminar pacientes fora das áreas de isolamento, bem como acompanhantes e colegas de trabalho. Para isso, medidas de contenção e controle devem ser tomadas, e é neste ponto em que cada detalhe faz a diferença para a segurança do paciente, profissionais de saúde e demais públicos que frequentam os hospitais.

Hospitais devem dedicar equipes assistenciais exclusivas para o atendimento de pacientes nos andares, ou locais, de isolamento. Estes profissionais não devem circular por áreas comuns dos hospitais como, refeitórios, cafeterias, ou andares de internação comuns, com trajes de isolamento ou, se não for estritamente necessário.

As equipes de limpeza e higienização devem ser dedicadas aos cuidados dos locais de isolamento. Carrinhos funcionais, e demais materiais utilizados para a limpeza deverão ser higienizados com frequência.

Os profissionais de limpeza e higienização e demais equipes de apoio que tiverem acesso aos locais de isolamento deverão usar EPIs adequados. A limpeza e higienização de áreas comuns e postos de enfermagem deverão ser realizadas com maior frequência.

Pontos de contato como maçanetas, puxadores, balcões, computadores, botões de elevadores etc., deverão receber atenção especial e deverão ser higienizados mais vezes. É importante também higienizar com frequência os dispensadores de álcool em gel. O monitoramento de saúde dos profissionais alocados nas áreas de isolamento deverá ser realizado com frequência.

Zelar pela vida de quem cuida ou salva vidas também deve ser uma prioridade das instituições, uma vez que, sem esta mão de obra, não haverá combate ou tratamento viável para frear o número de vítimas feitas pelo novo coronavirus.

O risco de uma crise nos hospitais privados
Adelvânio Francisco Morato*

Adelvânio Francisco Morato é Presidente da Federação Brasileira de Hospitais

A capacidade do Sistema de Saúde está sendo colocado à prova a cada semana que passa e cresce o número de casos de Coronavírus Covid-19 no país. Estados e municípios têm feito todo o esforço possível para aumentar a estrutura de atendimento da rede pública, que enfrenta o desafio de ter que continuar absorvendo os pacientes de casos usuais, e ter suporte para atender aqueles contaminados pela nova doença. E dentro desse cenário, a rede hospitalar privada tem, na medida do possível, reunido recursos para ajudar o SUS. Diariamente, a imprensa relata novas ações, como pesquisas de medicamentos sendo feitos em hospitais privados, parcerias para abertura de leitos, doação de equipamentos e insumos, entre outras iniciativas.

Contudo, uma parcela relevante da rede privada hospitalar sofre com as consequências que o Coronavírus vem provocando. O cenário é tão preocupante que muitos hospitais de pequeno e médio porte especulam o risco de fecharem as portas durante essa crise, pois os gastos dispararam, mas as receitas estão em queda. Houve a necessidade de investir em treinamento, pois o atendimento aos pacientes contaminados exige cuidados diferenciados. Também existe uma incapacidade em diversas unidades de reposição de estoque devido à dificuldade financeira. Os insumos estão sendo utilizados em grande quantidade e a reposição demanda recursos que muitos não dispõem.

Para piorar, a epidemia tem inflacionado o mercado de insumos hospitalares. Alguns itens chegam a registrar um aumento de mais de 400% no valor do seu preço. Segundo levantamento da FBH, há hospitais que compravam, antes do surto da doença, uma caixa com cem luvas por R$ 16,65 e agora compram por R$ 22,50. A unidade de álcool gel, que antes era vendida por R$8,50 a unidade, agora sai por R$ 24,90. Mas o que mais chama a atenção é o salto no valor de um caixa máscaras com 150 unidades, que antes eram compradas por R$ 5,20 e agora os preços chegam a variar de R$ 40,00 a R$ 80,00.

Esses preços estão fora da realidade das unidades de pequeno porte, que não têm escala para negociar valores com os fornecedores e ficam numa situação difícil: ou se endividam para ter os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) ou ficam sem itens básicos para a segurança de seus profissionais e dos próprios pacientes. Por isso, a Federação vem defendendo a criação de uma linha de crédito para essas compras, bem como que haja a autorização excepcional e temporária para a importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária sem registro na ANVISA, em especial os que servem ao diagnóstico e tratamento de pacientes crônicos e os que protejam os prestadores de serviços de serviço na área saúde.

Há também a suspensão de procedimentos eletivos que têm acontecido em todo o país, resultado direto da política de quarentena. Sabemos que a saúde de muitos pacientes depende da realização de exames e cirurgias que têm sido adiadas, situação esta que também afeta diretamente a sustentabilidade de muitos hospitais. Essas unidades estão registrando perda de receita devido à queda no volume desses procedimentos. Há hospitais no Rio em que o volume de procedimentos médicos caiu 90%. No Ceará, a redução chega a 80% e em Goiás, metade dos procedimentos foi cancelada. Essa baixa demanda ocorre porque tanto as operadoras de planos de saúde quanto o SUS estão cancelando cirurgias, exames e consultas eletivas. Soma-se a isso a elevação dos custos, forma-se um cenário nada animador para a sustentabilidade dos hospitais.

E o que talvez a sociedade desconheça é que a rede privada vem registrando um achatamento nos últimos dez anos. Quase 67% dos hospitais fechados estão em municípios afastados dos grandes centros. No desafio de se manter sustentável, são os estabelecimentos de pequeno e médio porte que mais enfrentam dificuldades para sobreviver. Prova disso é que eles representam quase 95% do total de fechados.

É imprescindível que o Governo esteja aberto a ouvir o que a rede privada vem pleiteando e, principalmente, que tenha a percepção de como o agravamento de uma crise no setor vai provocar impactos direto no atendimento do SUS. No interior, não são raros os hospitais privados que também são a referência de atendimento, inclusive para pacientes da rede pública. O fechamento desses estabelecimentos vai provocar uma sangria no sistema de saúde, que já sofre cronicamente com a falta de leitos. E isso pode acontecer no pior momento possível para o país.

Covid-19, hidroxicloroquina e a autonomia do paciente
Joberto Acioli *

Joberto Acioli é advogado e sócio do Pessoa & Pessoa Advogados Associados

Este texto trata da prescrição off-label da hidroxicloroquina para pacientes portadores da Covid-19, assunto que tem tomado um espaço muito amplo na mídia leiga e, também, nos comunicados entre profissionais e instituições na área da saúde, resultando em pressão para tomada de decisões que precisam ser objetivas. Reitera-se a necessidade e o âmbito do consentimento livre e esclarecido, tão necessário nesta, assim como em qualquer outra modalidade diagnóstica e terapêutica, um marco ao respeito à autonomia do paciente.

Mesmo em situações de calamidade e emergência cumpre que as decisões médicas sejam balizadas pela ciência. Ocorre que o extenso e intenso apelo da mídia tem nublado a objetividade das mentes pensantes e dificultado a ponderação adequada, influenciando, em um ou outro sentido, no pronunciamento e formação de opinião pelas autoridades de saúde.

A análise de como o tema tem sido exposto na mídia permite identificar o envolvimento de interesses os mais variados, no uso desta ou daquela forma de tratamento, por vezes deixando em evidência a intenção de barganhar com vidas para se obter dividendos políticos ou econômicos. E os agentes de saúde não podem se permitir envolver neste clima de campanha eleitoral ou ideológica, em defesa de causas outras que não a saúde daqueles sobre sua responsabilidade.

Vários estudos multicêntricos estão em curso no mundo, inclusive capitaneados pela Organização Mundial da Saúde[1], alguns organizados no Brasil[2], com alguns resultados parciais trazidos à tona, no entanto nenhum dos estudos até aqui realizados e publicados logrou apontar evidências comprováveis no sentido do que se possa esperar com o uso da hidroxicloroquina.

Outrossim, há evidência suficiente na forma de registro de milhares de mortes que têm ocorrido ao redor do mundo sem que ou governos de países – desenvolvidos ou não – todos com acesso à hidroxicloroquina, tenham sido capazes de conter estas evoluções severas ou fatais.

Sob outro ângulo, o da mídia eletrônica, amplamente acessível, de rápida e intensa difusão, há resultados isolados de êxito, nos quais não foi possível verificar o papel isolado da hidroxicloroquina na evolução, mas que tiveram grande apelo daqueles atingidos pelas notícias. Vale aqui ressaltar que Medicina, além da arte de tratar, é uma ciência; e que uma verdade científica não se forma com o número de vezes que um determinado fato é alardeado na mídia, mas com sua relevância e significado científicos.

Exatamente por isso, não pode o agente de saúde balizar sua decisão com relação ao paciente, tomando como parâmetro único aquela decisão que tomaria para si em uma mesma situação. Ao paciente deve também ser permitida tal escolha consciente e informada, tanto quanto possível à luz da situação.

É de se notar que, em discussões no meio médico, algumas vezes até de forma anedótica, tem sido difundida a opção de alguns médicos por serem tratados com a hidroxicloroquina, caso venha a receber o diagnóstico da Covid-19. E esta opção não se discute. É pessoal e tomada por um indivíduo supostamente bem informado. Mas cumpre que seja tomado o cuidado para que tal decisão não ultrapasse a pessoa do médico e seja utilizada para substituir a vontade do paciente.

Como qualquer medida terapêutica tomada fora de uma “situação de emergência”, cumpre que o paciente seja extensa e adequadamente informado sobre o que está sendo proposto e as opções disponíveis, ou ausência delas, de forma a permitir a tomada compartilhada de decisões sobre o tratamento.

Isto sob pena de responsabilização, do médico ou da instituição, por eventuais consequências deste resultado, ainda que, no balanço final, sejam positivos os resultados da decisão.

Tal particular, tal seja, a possibilidade de responsabilização do médico que prescreve, foi bem resumido nas palavras recentes do Ministro da Saúde[3]:

“No momento, o que a gente faz é disponibilizar para aqueles pacientes de gravidade média e avançada. A prescrição médica, o CRM, a caneta está na mão deles. Se quiser comunicar ao paciente dele, ‘olha, não tenho nenhuma evidência, acho que poderia usar esse medicamento, com tal e tal risco, podemos ter isso, e se responsabilizar individualmente, não tem óbice nenhum e ninguém vai reter receita de ninguém”.

Neste aspecto, por oportuno, vale trazer à luz o fato de que não se pode tomar como justificativa para a supressão da vontade do paciente a “situação de emergência” na saúde pública, pois esta não significa uma emergência naquele caso específico sendo tratado.

Tal premissa aplica-se, principalmente, mas não de forma exclusiva, aos pacientes em fase inicial da doença e, muito menos é aplicável, àqueles que não receberam confirmação do diagnóstico, encontrando-se, ainda, à espera de resultado de exames laboratoriais. Nenhuma emergência, qualquer que seja a definição utilizada, é vislumbrada nestes casos.

Os médicos e instituições devem organizar-se para fornecer informação adequada e obter o consentimento esclarecido dos pacientes e, quando indicado, de seus familiares e responsáveis, também no contexto da COVID-19, estejam estes pacientes inseridos no contexto de estudos clínicos ou não.

Tão ou mais importante que a obtenção do termo de consentimento esclarecido assinado pelo paciente é o próprio entendimento e aceitação da terapêutica proposta. E as ações para este esclarecimento devem estar registradas tanto no terno quanto no prontuário.

O esclarecimento deve incluir a ausência de evidências científicas para o uso de determinada terapêutica, as opções e alternativas disponíveis naquela realidade onde ele se encontra inserido, inclusive a possibilidade ou limitação para a utilização de medidas de suporte, que nem sempre estarão acessíveis, durante a evolução, que pode ser branda, moderada ou severa.

Principalmente, não podem ser suprimidas as possíveis complicações do uso deste fármaco, estas já conhecidas em dosagens habituais e ainda desconhecidas em doses máximas tais como preconizadas por alguns protocolos de pesquisa.

Sabe-se que, mesmo em doses habituais, há riscos para pacientes com cardiopatias, arritmias, patologias na retina, do fígado e dos rins. Também deve ser considerada a possibilidade de interações entre a hidroxicloroquina e outros medicamentos de uso diário e obrigatório pelo paciente.

O Ministério da Saúde[4] publicou as “Diretrizes Para Diagnóstico e Tratamento da COVID-19”, ratificando a NOTA INFORMATIVA Nº 6/2020-DAF/SCTIE/MS, de 1° de abril de 2020, que orienta sobre a possibilidade de uso do medicamento, em casos confirmados e, a critério médico, como terapia adjuvante no tratamento de formas graves, em pacientes hospitalizados, sem que outras medidas de suporte sejam preteridas.

Em 08.04.2020, houve deliberação, ainda não publicada, pela SESAB (Secretaria de Saúde do Estado da Bahia), no seguinte sentido: “a recomendação é que os pacientes hospitalizados recebam os medicamentos o mais precocemente possível após a internação[5]”.

Protocolos para uso da droga também estão sendo autorizados pelos governos dos estados do Piauí, Ceará e Pará[6].

Ainda que publicadas e confirmadas estas deliberações de órgãos do Executivo, elas não terão o condão de suprimir a necessidade de obtenção do consentimento, devidamente esclarecido, do paciente.

Daí a necessidade de preparo das instituições, com a elaboração de protocolos para fornecimento de informação acessível e suficiente, assim como a formatação de termos adequados para o registro desta decisão, compartilhada, pelo uso da modalidade de tratamento que, frise-se, ainda não se firmou como capaz de trazer resultados positivos e previsíveis para os doentes portadores da Covid-19.

[1] <In: https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19—23-march-2020>

[2] https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46669-ministerio-da-saude-acompanha-9-estudos-para-obter-novos-tratamentos-contra-coronavirus

[3] Coletiva de Imprensa _ 09/04/2020.

In: https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2020/04/07/interna_nacional,1136634/mandetta-libera-medicos-a-prescrever-cloroquina-contra-coronavirus.shtml

[4] https://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2020/April/07/ddt-covid-19.pdf

[5] http://www.saude.ba.gov.br/2020/04/08/bahia-autoriza-tratamento-que-associa-hidroxicloroquina-e-azitromicina-para-pacientes-com-coronavirus/

[6] https://www.pi.gov.br/noticias/governador-autoriza-compra-de-cloroquina-e-hidroxicloroquina-para-tratamento-da-covid-19/

Perplexidade e retrocesso em decisão liminar sobre MP 936/2020
Renata Azi *

* Renata Azi é sócia do Pessoa & Pessoa Advogados Associados

No apagar das luzes do último dia 6, uma medida liminar concedida pelo STF em Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pela Rede Sustentabilidade, parece ter aniquilado a Medida Provisória 936/2020, deixando milhares de trabalhadores entregues à própria sorte. O atual estado de calamidade pública decorrente do grave problema sanitário de escala mundial obrigou governos de inúmeros países a adotar medidas restritivas de isolamento.

 Essas medidas incluem a manutenção da população em casa, salvo aqueles que realizam atividades legalmente qualificadas como essenciais, com o fechamento de empresas nos mais diversos setores da economia. Tudo isso no intuito de frear a disseminação da Covid-19, sendo este também o cenário vivenciado no Brasil.

Na tentativa de minimizar os impactos negativos causados pelo isolamento e a paralisação dos negócios e de salvaguardar empregos, o Governo federal editou uma série de medidas provisórias. Em especial a 936/2020, que instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e o pagamento de benefício emergencial, admitindo a flexibilização de direitos trabalhistas através de acordos individuais celebrados diretamente entre o empregador e o empregado.

 A MP 936/2020 autorizou a suspensão temporária do contrato de trabalho pelo prazo máximo de 60 dias, com o pagamento de benefício emergencial pelo Governo, equivalente a 70% ou 100% do valor do seguro-desemprego a que o empregado teria direito. A Medida Provisória também autorizou a redução da jornada de trabalho e do salário, de forma proporcional, com a preservação do valor do salário-hora, apenas determinando que o sindicato profissional fosse, a posteriori, comunicado do ajuste.

Portanto, empregado e empregadores estavam livres para ajustar as novas condições e preservar os postos de trabalho, assegurando àqueles a manutenção do seu negócio e a estes não apenas os seus postos de trabalho como a sua subsistência e de suas famílias.

Contudo, de forma surpreendente, o Supremo fez letra morta da MP 936/2020, em decisão de natureza cautelar concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski na ADI 6.363/DF. O ministro aplicou interpretação conforme a Constituição, estabelecendo que os acordos individuais “apenas surtirão efeitos jurídicos plenos após manifestação dos sindicatos dos empregados”, ainda que essa manifestação seja o silêncio sindical (aceite tácito), sob pena de invalidade.

A decisão causa perplexidade sob inúmeros vieses: (i) político, pois era de se esperar que houvesse interlocução entre os Poderes do Estado para o bem da sociedade e segurança jurídica dos jurisdicionados. Se o executivo edita medidas urgentes que começam a ser questionadas judicialmente com a chancela da mais alta Corte Brasileira que segurança se terá para implementá-las? (ii) econômico e social, pois, privados da perspectiva de validamente suspender os contratos de trabalho ou reduzir proporcional jornada e salário, e sem condições de suportar os ônus decorrentes de uma negociação coletiva, a consequência inexorável será o desemprego para milhões de famílias brasileiras e uma profunda recessão; (iii) prática: quem pagará os salários dos empregados no período que decorrer entre o ajuste individual e a manifestação do sindicato (ou a sua ausência) e o que acontecerá se o Sindicato não convalidar o acordo individual?

 Os sindicatos estão abertos, funcionando normalmente? Como se dará a negociação? O que fazer com os mais de 7 mil acordos individuais já registrados, segundo dados do Ministério da Economia? (iv) jurídica posto que a MP 936/2020 não nos parece padecer de inconstitucionalidade: nenhum princípio constitucional é absoluto.

A suspensão do contrato de trabalho não tem assento na Constituição Federal, tampouco se extrai dela qualquer condicionante à prévia negociação coletiva. Tanto assim que inúmeras normas infraconstitucionais estabeleceram hipóteses de suspensão do contrato de trabalho, a exemplo do que ocorre quando o empregado está em gozo de benefícios previdenciários como auxílio-doença ou auxílio-maternidade, e não há, nestes casos, o pagamento de qualquer fração salarial pelo empregador. Portanto, o que a MP 936/2020 fez foi criar nova hipótese de suspensão do contrato de trabalho.

O contrato de trabalho é sinalagmático por essência, havendo uma relação de prestação e contraprestação, do ut des. É por esta razão que na suspensão contratual o empregado não trabalha e o empregador não lhe remunera. Contudo, a MP mitigou os efeitos deletérios da suspensão contratual quando estabeleceu o pagamento de benefício emergencial e ainda exigiu do empregador, mesmo sem contrapartida oferecida pelo empregado, a manutenção dos benefícios e o pagamento de 30% do valor do salário para empresas cujo faturamento anual seja superior a R$ 4.800.000,00 (quatro milhões e oitocentos mil reais).

Portanto, se a Constituição Federal não trata da suspensão do contrato de trabalho, nem mesmo para condicioná-la a prévia negociação coletiva, a pecha de inconstitucionalidade não é razoável.

Quanto à redução da jornada e do salário a MP 936/2020 determinou a preservação do valor do salário-hora, o que, a rigor, não pode ser tachado de redução salarial e, portanto, não se vislumbra ofensa ao princípio constitucional de irredutibilidade salarial e, pois, a necessidade de negociação coletiva.

Além disso, nenhum direito ou princípio constitucional é absoluto. A supremacia das negociações coletivas como vetor de flexibilização de direitos trabalhistas cede e deve ser sopesado com outros, como o da garantia do emprego, o da função social da empresa, o da valorização do trabalho e, em última análise, o da dignidade da pessoa humana. Esta, no momento de pandemia mundial e de grave crise econômica, significa ter um posto de trabalho e fonte de renda quando o estado de isolamento social for superado.

A negociação coletiva é, em regra, conflituosa e envolve, quase sempre, a concessão de benefícios em troca daquilo que se quer. Ora, o momento exige rapidez, imediatidade e não há espaço para negociatas. O que fez o STF, sem analisar os impactos pragmáticos da sua decisão, foi priorizar os sindicatos e as negociações coletivas, tão combalidos pela reforma trabalhista de 2017, em detrimento de toda a sociedade brasileira e, em especial, dos milhões de trabalhadores cuja última esperança de manter seus empregos foi pelo ralo junto com a MP 936/2020.