Não é fácil definir, com precisão, a ocorrência de força maior e caso fortuito, pois sequer há consenso na doutrina e na jurisprudência em torno dos seus respectivos contornos e significados, ainda mais quando o nosso legislador não cuidou de fazer uma nítida distinção entre essas figuras no parágrafo único do art. 393 do CC. Em regra, costuma-se associar a força maior a eventos imprevisíveis relacionados a fatos da natureza, tais como enchentes, furacão e tempestades; ou, embora previsíveis, de efeitos inevitáveis.
O caso fortuito, por sua vez, está intimamente relacionado a acontecimentos extraordinários provocados pelo comportamento humano, mas também imprevisíveis e de consequências inevitáveis. Essas características comuns explicam a afinidade entre elas e a utilização promíscua dos termos na literatura jurídica e na jurisprudência, como se fossem sinônimos[1].
O legislador do trabalho dedicou o Capítulo VIII do Título IV da CLT à força maior, composto pelos artigos 501 a 504. E no caput do art. 501 a definiu como “todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta e indiretamente”. E no parágrafo primeiro deste dispositivo sublinhou que “a imprevidência do empregador exclui a razão de força maior”.
Isso significa, em outras palavras, que o comportamento culposo (ou negligência) do empregador impede a tipificação da força maior e, consequentemente, não o exime de responsabilidade ou do cumprimento de qualquer obrigação. A norma do art. 501, como se vê, apresenta clara simetria com o parágrafo único do art. 393 do CC, pois considera caso fortuito ou força maior o “fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”.
Infere-se daí que a inevitabilitade dos efeitos do evento, fato ou acontecimento extraordinário, ainda quando previsível, a exemplo de furacões ou tempestades, encerra um traço comum dessas normas e integra o substrato fático necessário para sua incidência no caso concreto, o que exclui, repita-se, a responsabilidade do devedor e, muitas vezes, torna impossivel o adimplemento da obrigação estipulada no contrato, desde que o fato não lhe seja imputável. Ou seja, ter-se-ia aqui um “inadimplemento fortuito”[2].
Enfim, as hipóteses de caso fortuito ou força maior só liberam o devedor de adimplir a obrigação assumida quando “acarretam a impossibilidade objetiva no cumprimento da prestação, ou seja, quando seus “efeitos, inevitáveis, obstaculizam inteiramente o cumprimento da prestação, de tal sorte que o devedor não consegue resistir ao acontecimento e, por isso mesmo, não pode ser responsabilizado pelo credor pela inexecução de determinada obrigação”[3].
Essa impossibilidade afeta, portanto, a comutatividade do ajuste que estipula obrigações de execução continuada ou diferida, como ocorre no contrato de trabalho. Mas é importante ressaltar que o fato extraordinário e imprevisível “consubstancia-se naquele que foge completamente ao curso ordinário dos acontecimentos, não se inserindo, por isso mesmo, no risco contratualmente assumido”[4]. Logo, para que se configure a força maior ou caso fortuito, o fato deve extrapolar a álea de risco inerente à atividade desempenhada pelo empregador. Em suma, exigem-se dois requisitos para sua tipificação: (i) não imputabilidade do acontecimento extraordinário ao devedor-empregador; (ii) impossibilidade de o devedor resistir aos efeitos desse evento.
Isto posto, o estado de calamidade pública decretado recentemente pelo Congresso Nacional em virtude da pandemia do coronavírus (Covid-19) enquadra-se, sem dúvida, no conceito ou definição legal de caso fortuito ou força maior, na medida em que encerra acontecimento extraordinário de efeitos inevitáveis na atividade empresarial.
Também é público e notório que muitas prefeituras e estados restringiram a circulação de pessoas (isolamento ou distanciamento social), mesmo assintomáticas, com o nobre e louvável intuito de evitar a propagação do vírus. Isso acarretou, porém, a paralisação total ou parcial, de forma temporária ou, quiçá, definitiva, da atividade empresarial em vários setores da economia, sobretudo nas areas de turismo (companhias aereas e hotelaria) e entretenimento, além de bares e restaurantes.
Esse cenário de crise social e econômica provocado por fato extraordinário, que não pode ser considerado inerente ao risco empresarial[5], impede, obviamente, o empregador de adimplir obrigações básicas ou elementares, inclusive de pagar salário aos seus empregados, pois sem receita não aufere lucro, o que é essencial para seu capital de giro ou fluxo de caixa, como se diz no jargão da contabilidade ou do universo empresarial.
Havendo, assim, a impossibilidade objetiva no cumprimento da prestação (inadimplemento fortuito), o empregador não pode ser acusado de cometer nenhum ilícito trabalhista, muito menos lhe pode ser imposto o ônus de pagar salário no período de inatividade empresarial se o empregado também não lhe presta serviço.
O contrato de trabalho é, indiscutivelmente, sinalagmático ou comutativo. Logo, se o empregado não pode prestar serviço por fato não imputável ao empregador, mas em decorrência de acontecimento extraordinário que caracteriza força maior (ou fortuito externo), o empregador, por sua vez, não pode ser instado a pagar salário nem cumprir qualquer prestação enquanto durar essa situação, o que importa, do ponto de vista técnico-jurídico, sua suspensão nesse período de crise.
Da mesma forma, a paralisação temporária ou definitiva do trabalho motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou, ainda, pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade empresarial, também exime o empregador de pagar a indenização pela inevitável rescisão do contrato de trabalho, que ficará a cargo do governo responsável[6], como estatui o art. 486, caput, da CLT, pois caracteriza o fato do príncipe. O fechamento de bares, cinemas, teatros, restaurantes, clubes sociais e a restrição de mobilidade urbana em várias cidades, por ato de autoridade municipal ou estadual, ilustra bem essa hipótese.
Se o empregador não pode cumprir qualquer prestação ou obrigação, inclusive de pagar salário, quer por motivo de força maior (calamidade pública – pandemia), quer em consequência da paralisação parcial ou total do trabalho ou da atividade empresarial por ato de autoridade (fato do príncipe), nada obsta – se assim optar e julgar financeiramente viável – reduzir a jornada de trabalho de seus empregados e, proporcionalmente, os respectivos salários, como, aliás, autoriza o art. 503 da CLT, que, no entanto, limita a redução ao percentual de 25%, respeitando-se o salário mínimo regional.
Nem se alegue, como sustenta uma parcela da doutrina e da jurisprudência, que essa norma é inconstitucional porque contraria o art. 7º, VI, da CF/88, que só admite a redução de salário mediante negociaçao coletiva, de modo que não se pode prescindir do aval do sindicato que representa a categoria profissional.
A objeção não procede, por algumas razões. Em primeiro lugar, porque a norma constitucional veda a redução salarial pura e simples, perpetrada pelo empregador de forma unilateral, o que, diga-se de passagem, já esbarraria no art. 468 da CLT, que, como se sabe, não tolera nenhuma alteração nociva do contrato de trabalho, mesmo com a anuência do empregado. Daí por que o legislador constituinte só autorizou a redução via acordo ou convenção coletiva. Mas essa garantia, por outro lado, não é absoluta, como parece à primeira vista. Nenhum direito individual, mesmo inserido na seleta categoria dos direitos fundamentais, pode se sobrepor ao interesse público ou social, como dispõe, a propósito, o art. 8º da CLT.
Quando a garantia ou direito individual, de status constitucional, colide com outros valores ou princípios também constitucionais, a questão deve ser resolvida à luz do princípio da proporcionalidade, sopesando-se os direitos que reclamam proteção (CF 5º §2º). Pois bem. A empresa, tal como a propriedade, desempenha relevante função social (artigos 5º, XXIII, da CF), na medida em que gera postos de trabalho e fomenta a economia local, o que resulta em última análise, na arrecadação de tributos para o erário que são imprescindíveis para garantir o desenvolvimento nacional e promover o bem-estar social, que são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (CF 3º II e IV).
Não é à toa que o art. 170 da nossa CF encampou como princípios fundamentais da ordem econônima a função social da propriedade, que, aqui, compreende os bens de produção empregados na organização do estabelecimento empresarial ou na exploração da atividade econômica, e a busca do pleno emprego nos incisos III e VIII desse dispositivo, de modo que nenhum interesse particular ou individual se mostra mais digno de proteção do que a preservação da empresa, pois orbita em seu redor uma gama de interesses metaindividuais de consumidores, do fisco e de trabalhadores[7].
O artigo 47 da Lei de Recuperação e de Falência (L 11.101/05) reafirma e concretiza esses princípios no plano infraconstitucional quando diz que “a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.
Com isso, adota-se a técnica da interpretação conforme a constituição para se refutar a pecha de inconstitucionalidade do art. 503 da CLT por suposta incompatibilidade com o art. 7º, VI, da CF, para legitimar eventual redução da jornada com consequente e proporcional redução salarial, mediante acordo individual, em caráter excepcional, diante da crise aguda provocada por uma pandemia mundial.
Em todo caso, a redução salarial negociada, via acordo ou convenção coletiva, não deve ser descartada, pois mitiga o risco de eventual passivo, tendo em vista que a jurisprudência trabalhista costuma exigir a participação sindical, tout court, isto é, em qualquer circunstância.
Conclusão.
A solução que melhor se coaduna com o nosso sistema jurídico é a de que a força maior (ou fortuito externo), consubstanciada na pandemia mundial, e a paralisação temporária ou definitiva do trabalho por ato de autoridade municipal, estadual e/ou federal, inclusive por promulgação de lei, resolução ou decreto (fato do príncipe), pode acarretar tanto a suspensão quanto a extinção do contrato de trabalho, cabendo ao governo responsável, conforme o caso, prover as necessidades dos empregdos enquando durar o estado de calamidade pública e de crise financeira que o impossibilita de cumprir essa obrigação, mediante programa específico para essa finalidade (seguro-desemprego), como vêm fazendo outros países atingidos pela mesma enfermidade; ou pagar a indenização pela ruptura do vínculo, se esse efeito (ou consequência) for inevitável ou necessário.
Tudo porque esses fatos extraordinários, que escapam da álea de risco de sua atividade (fatores externos), pois imprevisíveis e inevitáveis, impedem o empregador de adimplir qualquer obrigação que deriva do contrato de trabalho (inadimplemento fortuito). Por conseguinte, a exigência do consentimento sindical prevista no art. 7º, VI, da CF para se promover a redução salarial deve ser flexibilizada ou mitigada nesse contexto atípico de vulnerabilidade social, em nome dos princípios fundamentais em que se assenta a própria República Federativa do Brasil.
[1] Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, por exemplo, advertem que “as situações da vida real podem tornar muito difícil a diferenciação entre caso fortuito ou força maior, razão pela qual, a despeito de nos posicionarmos acerca do tema, diferenciando os institutos, não consideramos grave erro a identificação dos conceitos no caso concreto” (Manual de Direito Civil, volume único, editora Saraiva, 2017, p. 360). E aduzem: “ademais, para o direito obrigacional, quer tenha havido caso fortuito, quer tenha havido força maior, a consequência, em regra, é a mesma: extingue-se a obrigação, sem qualquer consequência para as partes” (ibidem).
[2] Obra e autores citados, p. 361.
[3] Tepedino, Gustavo; Pareceres, Vol. II, editora Revista dos Tribunais, p. 342.
[4] Tepedino, Gustavo; Pareceres, Vol. II, editora Revista dos Tribunais, p. 555.
[5] Em sentido contrário, Mauricio Godinho Delgado: “De todo modo, a prática jurisprudencial raramente tem acohido essa modalidade de ruptura do contrato, uma vez que considera as modificações e medidas legais e administrativas do Estado, que possam afetar a empresa, mesmo gravemente, como parte inerente do risco empresarial. Em consequência, não configuram factum principis ocorrências como, maxidesvalorizações cambiais, implementação de planos oficiais, mudanças governamentais nas regras relativas a preços, tarifas, mercados, etc. Também não seria factum principis, de mandeira geral, em princípio, o fechamento do estabelecimento por ato da autoridade administrativa sanitária, no exercício de sua função fiscalizadora; menos ainda, o fechamento por decisão judicial (despejo, por exemplo)” (in Curso de Direito do Trabalho, 18ª edição, ano 2019, editora LTR, p. 1.358).
[6] A doutrina, porém, diverge quanto ao montante da indenização que deve ficar a cargo do governo; se deve ficar responsável apenas pela indenização correspondente à chamada “multa” de 40% sobre o FGTS ou por todas as parcelas rescisórias. O entendimento majoritário é no sentido de que o Estado dever arcar tão-somente com a indenização adicional do fundo de garantia. Na hipótese de encerramento da atividade por motivo de força maior, essa indenização seria reduzida à metade (20%), de acordo com o art. 18, § 2º, da Lei 8.036/90, assim como a indenização devida pela rescisão antecipada do contrato por prazo determinado prevista no art. 479 da CLT, consoante art. 502, II, da CLT (cf., p. ex., Volia Bomfim Cassar, Direito do Trabalho, 14ª edição, ano 2017, editora Método, p. 994/995).
[7] Nesse mesmo sentido, Fabio Ulhoa Coelho: “O princípio da preservação da empresa reconhece que, em torno do funcionamento regular e desenvolvimento de cada empresa, não gravitam apenas os interesses individuais dos empresários e empreendedores, mas também os metaindividuais de trabalhadores, consumidores e outras pessoas; são estes últimos interesses que devem ser considerados e protegidos, na aplicação de qualquer norma de direito comercial” (Curso de Direito Comercial, Volume 1, 23ª edição, Revista dos Tribunais, ano 2019, p. 72).